Pequenos momentos de “normalidade” são das coisas que nem damos conta, mas que acabam por compor um todo que chamamos de felicidade.
É fácil desprezar a importância de estarmos com os amigos num bar, um passeio à beira-rio, um dia de trabalho sem chatices, até mesmo acordar de noite para mudar a fralda de um bebé e embalá-lo novamente até adormecer.
Não é apenas fácil desprezar a importância como também é fácil fazer outra coisa ainda: reclamar.
A saturação que certas tarefas nos impõem conduz por vezes a atitudes e palavras irreflectidas que só são sentidas no calor de uma discussão. Infelizmente o tempo é um mestre cruel, e não permite voltar atrás após uma acção da qual não nos orgulhamos.
Está feito e pronto, arca-se com as consequências.
Uma coisa posso garantir, são destas pequenas coisas que nos irritam e maçam que vamos sentir falta quando um dia desaparecerem. Mais ainda se forem características de um amigo, colega de trabalho ou até familiar. Aquelas atitudes parvas que dizemos não ter paciência para aturar, mas que vamos aturando sempre, alguém que é distraído a ponto de se esquecer dos seus próprios interesses e que com isso nos leva ao limite da paciência, aquela gargalhada estridente que chama a atenção de toda a gente num lugar publico… e no entanto, no dia em que os responsáveis por essas atitudes desaparecem, fica um vazio que dá lugar ao que não queremos admitir, mas que se chama de saudade. É a falta daquela pessoa que se foi, o lugar vago que dantes era sempre preenchido por alguém, um silêncio onde dantes havia uma conversa ou discussão.
Depois de termos a consciência de que não se pode voltar atrás, e de que a perda é definitiva, vem um turbilhão de emoções de tal forma intenso que as lágrimas surgem como resposta fisiológica. Após o choque inicial a vida continua dentro da normalidade possível.
Lições a tirar de episódios destes existem, tal como de qualquer situação a partir da qual queiramos aprender. Uma que posso apontar, é que não devemos esperar que a felicidade seja um único acontecimento que aparece como que por artes mágicas e deixa toda a gente com um sorriso de orelha a orelha. Podem existir casos assim, mas para a maioria das pessoas, senão a totalidade, a felicidade é um conjunto de pequenas situações que nos ajudam a vencer cada dia. E não são apenas as que nos dão prazer. Mesmo o que classificamos de negativo acaba por ser parte da nossa felicidade na forma de experiência de vida.
Há que aproveitar muito mais o que vivemos, levar a vida com mais calma e paciência, dar menos importância ao que nos parece grave, até porque na maioria das vezes não é.
Não são as situações da vida que são graves, os olhos de quem as vê é que as tornam assim.
Estou ainda a despedir-me do meu avô que perdi no passado dia 25. Este texto está grandemente ligado a esse sentimento que vai e vem conforme olho para os objectos que lhe pertenceram. As memórias assaltam-me e entre lágrimas e sorrisos lá vou recordando aquele que foi um homem com H. Limitado em muitos aspectos, mais teimoso que uma mula e maldizente como só ele, ainda assim foi um trabalhador incansável que sem dar luxos à família, nunca deixou no entanto que ninguém debaixo do seu tecto passasse necessidades.
Valentim de seu nome, deu o seu ultimo suspiro quando a minha avó lhe desfazia a barba, morrendo nos braços da mulher que toda a vida foi sua companheira e que cuidou dele até ao ultimo minuto, por vezes sabe-se lá a que custo. Era terrível de aturar.
60 anos em comum, não se assiste já com facilidade.
18 anos de mina nas pirites alentejanas, uma fuga para a cidade em busca de vida melhor, 15 anos numa secção de pintura numa fábrica de automóveis, e sempre tendo a sua horta da qual cuidava até que já nem a Lua desse para ver o que fazia.
Muitos dias em que se esquecia de comer, tal era o vicio de amanhar a terra, de ver as plantas germinarem e no fim colher os frutos. Nunca se tratou muito bem, e os esforços a que se sujeitou cobraram uma pesada factura nos últimos anos.
Assim partiu um homem que me deu terreno fértil onde estabelecer as minhas bases. Foi por causa dele em parte que não cheguei até hoje a saber o que é ter fome. Por duas vezes abriu as portas da sua casa para que eu pudesse ter um tecto.
É com imensa gratidão e saudade que vos falo aqui de Valentim Ferreira Rodeia, alentejano e meu avô.